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"PARA A LAURA - Histórias de uma Gata"





Cap. 6: A Chiquita

Capitulo 6: A Chiquita


Pelos meus poucos meses de vida que, até agora, vivi aqui em casa já me apercebi que a minha dona é apaixonada por todos os animais mas um pouco mais sensível, digamos mesmo, mais identificável com os gatos, no entanto, segundo consta, a ligação que a uniu a esta cadela não há nada que o possa explicar, a não ser a força do amor ou talvez ... quem sabe, vidas passadas! Março de 2001, ano Chinês da Serpente, 2H00 da madrugada. É a nossa dona de opinião que nada acontece por acaso, daí tudo ter uma razão de ser. Talvez isso explique o facto que passo a contar-te: Após ter passado no Largo de Alcabideche, por volta das 21H00, ao ver uma cadela no meio da estrada, aflita, a nossa dona pensando e repensando chegou à conclusão que - por falta de condições - não podia acolher mais uma, por muito que a situação a sensibilizasse, continuando assim o seu caminho. No entanto, passadas quatro horas, ao voltar para casa, pelo mesmo caminho, a mesma cadela, encontrava-se, no mesmo sítio, e no mesmo estado sem que ninguém a tivesse socorrido apesar do movimento intenso da zona. Claro está que a dona logo pegou na cadela, que por sinal, na altura, julgou ser um cão e colocou-a no seu lindo carro que ainda cheirava a novo. Mas antes disto, já tinha tentado averiguar de que mal padeceria o pobre animal. Não sabendo no entanto a que conclusão chegar. Pois o animal em questão estava de pé, no meio da estrada, com dificuldades nas patas traseiras, um ar muito infeliz e um mau cheiro que de tão nauseabundo ser não se podia sequer uma pessoa chegar perto. Não havia dúvida de que todo o mal se resumia à traseira. Mas o mau cheiro, esse, era tão intenso e mau que baralhava a minha dona. Pois era um misto de sangue e sujeira. Foi-lhe então diagnosticado, mais tarde, pelos veterinários que a observaram e trataram que se tratava de uma menina, tinha sido atropelada e devido à intensidade da pancada de que fora vítima na região da bacia tinha ficado incontinente de fezes e urinas. Daí aquele cheiro pestilento. A Chiquita foi então tratada e aos poucos foi recuperando. Mas quanto ao problema da incontinência nada havia a fazer. Não há dúvida de que tudo é relativo nesta vida. Para a maioria das pessoas o problema de saúde da Chiquita torna-la-ia imprópria para viver uma existência digna. Ora dignidade e coragem era tudo o que a nossa dona via estampado no focinho daquela cadela. Havia, então, duas opções ou acabar a sua existência por ali, sendo a nossa dona a responsável ou tentar tornar-lhe a vida o mais agradável na medida do possível. Claro está, que conhecendo agora a minha dona como a conheço, para ela só havia uma opção. A segunda. E foi a que ela seguiu. Para a dona o facto de acreditar em reencarnação não a torna menos cuidadosa em relação à sua vivência actual. Segundo ela, se cá estamos é por algum motivo e por certo com um caminho a percorrer o qual não devemos nem temos o direito de abandonar ao primeiro obstáculo que surja. Fosse, o que fosse, teriam que o resolver, as duas, e em conjunto já que o Universo se tinha encarregue de as unir. Quanto mais transtorno a Chiquita causava à nossa dona mais ela teimava em soluciona-lo da melhor forma tentando disso tirar partido. E mais uma vez a vida da nossa dona se modificou juntamente com a sua nova cadela e restantes gatinhas. De algumas coisas a nossa dona abdicou outras tantas conquistou. Entre elas mudou-se, desta vez, para Cascais. Para uma casa onde pudesse ter a sua cadela em paz e sossego. Devido à incontinência não a podia ter dentro de casa e no Monte Estoril a varanda era demasiado pequena. Quase na altura da mudança pronta para receber a sua cadela, mais problemas surgiram e a dona viu-se obrigada por falta de condições a dá-la. Claro que com a condição de que se houvesse algum problema a cadela voltaria para ela. Passaram-se cerca de dois meses, em que a minha dona, por vezes ia visitar a Chiquita e levá-la a passear ao jardim dos Passarinhos, no Monte Estoril, constatando, sempre que a Chiquita estava a ser muito bem tratada. Mas ao fim deste tempo o casal que a adoptara também, eles mudaram de casa e pediram à minha dona para a ir buscar e lá foi a nossa dona a correr buscar a sua rica cadela. Para a Chiquita parecia que nunca se tinha afastado da sua verdadeira dona. Que nada mais se tinha passado senão uma ausência um pouco maior. Parecia que ela sabia que iam voltar a ficar juntas. E assim, continuaram as duas juntas tentando adaptar-se o melhor possível à vida uma da outra. Devido à incontinência a dona comprou-lhe uma grande transportadora na qual a Chiquita viajava, agora, de carro, fosse para onde fosse, sem problemas de o sujar. E na varanda tinha uma grande casota para ela viver. Também a Chiquita era conhecida por muitos apreciadores de cães e não raro era ver possuidores de belas e apuradíssimas raças ficarem admirados pela sua forte presença e alegria. Parecia ser essa a melhor forma de caracterizar a Chiquita uma cadela alegre e feliz. Aos poucos a Chiquita com as suas canelas finas, os seus cinquenta centímetros de altura e os seus cabelos ao vento que - em muito lembravam os da nossa dona – foi ganhando carisma e mostrando que não é uma simples deficiência urinária que impede um ser de viver heroicamente esta dádiva que é a vida. Dignidade não é esconder-mo-nos atrás de um problema, mas sim, assumindo o problema ter-se a coragem de continuar em frente. Fraseando o que alguém disse: “Não se é miserável por ser incontinente, mas miserável apenas quando não se é capaz de suportar a incontinência”. A Chiquita habituou-se a andar de trela e a saber passear solta nos jardins em que a dona a soltava. Por sua vez, a nossa dona começou a frequentar apenas sítios em que a sua cadela pudesse entrar, só ia a Centros Comerciais que permitissem a entrada a animais, frequentava esplanadas onde a deixassem estar com a cadela, e até viajar viajou acompanhada da sua Chiquita. Também as parecenças entre as duas pareciam aumentar a cada dia que passava. Várias pessoas eram unânimes em reconhecer as semelhanças. A própria dona as identificava: O pelo meio liso e meio ondulado duma e o cabelo da outra. A voz fina de ambas. Pequenas, baixinhas e incansáveis. Para não falar no ar sempre alegre das duas. Com tanta empatia entre ambas foi-se desenvolvendo uma forte telepatia entre as duas que a dona achava surpreendente mas ao mesmo tempo fruto da sua imaginação. Infelizmente, só após a morte da sua querida cadela é que teve conhecimento de vários estudos que estão a ser feitos com animais precisamente nesse sentido, vindo confirmar essa impressão que ela tinha de que a cadela sabia o que ela pensava. Todos sabem que os cães reagem a certas roupas que se vestem ou a certos objectos quando chega a hora do passeio. Mas neste caso, era diferente pois a Chiquita não estava fisicamente próxima da dona, estavam separadas em salas e pisos diferentes. No entanto, por motivos de ordem profissional a dona numa questão de horas era capaz de mentalmente alterar a ideia que tinha em relação a levar, ou não, a Chiquita com ela na próxima saída. Ora da mesma maneira e subsequentemente a Chiquita parecia reagir a esses mesmos pensamentos, ficando mais ou menos exaltada começando mesmo a ganir. Para a dona os gatos são os seres que melhor sabem estar e entreter-se sozinhos, coisa que um cão por norma não sabe tão bem fazer. Pois algumas das características que faziam a nossa dona adorar tanto esta cadela eram precisamente a sua independência, inteligência e sentido prático. A dona costumava dizer não se importar de ter um trabalho imenso se no fim a sua cadela ficasse contente. Diz ela que: -“Quando nos sacrificamos por alguém não devemos esperar agradecimentos em troca, mas sim, constatarmos e regozijarmo-nos com a felicidade desse ser. Então, aí, sim, valeu a pena o esforço”.

Chiquita

Ora era precisamente isto que encantava a dona. A Chiquita parecia corresponder a tudo o que a dona fazia por ela. Se a levava ao parque a Chiquita corria mais do que qualquer galgo de apurada raça, rebolava na relva, de papo para o ar com um ar de completa satisfação e por vezes, bem...por vezes excedia-se um pouco tentando roubar os lanches, que se encontravam por perto, de alguém mais descuidado como, certa vez, que ao entrarem no Jardim dos Passarinhos, no Monte Estoril a dona reparou num indivíduo que descansava deitado na relva. Mais à frente a dona sentou-se acompanhada do seu namorado, enquanto a Chiquita, corria alegremente de um lado para o outro. Numa dessas correrias a dona reparou que ela transportava algo na boca, que depois de averiguado, verificou tratar-se de uma simples lata de conservas. Aflita não fosse a sua cadela magoar-se a dona logo lhe retirou aquilo da boca, pensando que ela tinha encontrado a lata nalgum lixo que tivesse ido vasculhar não mais pensando no assunto, até ao momento em que, o mesmo indivíduo que ela tinha visto à entrada do parque, deitado na relva, lhes apareceu à frente com um ar ameaçador a questionar o seguinte: _ De quem é esse cão? Ao que o namorado da minha dona, levantando-se rapidamente do banco de jardim em que se encontrava sentado, se apressou a responder: - É meu! Ao mesmo tempo que também, a dona objectava: - É minha! Aí, o dito senhor, mudando radicalmente de atitude e com um certo ar de gozo, retorquiu: - Há, há, então, vão ter que me pagar uma lata de sardinhas que esse cão me roubou! Evidentemente que pagaram a lata de sardinhas ao referido senhor com o devido pedido de desculpas enquanto a minha dona olhava complacente para a sua rica cadela. Escusado será dizer, que a partir desse momento, não houve vez que a dona soltasse a Chiquita, nalgum local público, sem que o dono não ficasse apreensivo e de olho nos lanches alheios. Não que tivesse algum interesse especial neles mas não fossem os mesmos despertar a atenção da nossa amiga. Bom, isto foi só um pequeno aparte de que me lembrei. Se a levavam à praia fazia buracos na areia e metia-se lá dentro para ficar mais fresca. Se ia ao Centro Comercial comportava-se lindamente como qualquer cadela do mais refinado pedigree. Convém aqui referir que, nestas alturas, costumava usar um calção - cá para mim aquilo era mais tipo tanga mas passemos à frente. Até ver casas, ela foi, quando a dona andou à procura. Foi, entrou, viu e ouve uma especialmente de que ela gostou. A dona diz só não ter comprado essa casa por a mesma ascender a um plafond bastante elevado. A Chiquita era uma cadela de gostos refinados. Mas o que eu te queria contar Laura, de mais significativo, pois também eu nunca tive a sorte de conhecer um cão assim - como bem te deves lembrar o nosso encontro com a dona deu-se justamente no dia e mais precisamente no momento do funeral da Chiquita - é que a cadela quando chegava a casa estava normalmente tão feliz que se estava muito cansada aproveitava logo para deitar-se e dormir com um ar de eterna felicidade ou caso contrário aproveitava para brincar um pouco mais com os seus brinquedos. A dona diz que ela só ficava inquieta se por alguma razão não a podia levar a dar os seus passeios, porque caso contrário a Chiquita fazia a vida dela sem importunar ninguém. “Nunca na minha vida conheci ninguém tão digno, tão merecedor de viver como aquela cadela de pouco mais de 50 centímetros de altura, pouco mais de comprimento e canelas finas. Com os seus cabelos ao vento, o seu lenço amarelo ao pescoço e o seu porte altivo” é assim que a dona se refere à sua querida Chiquita. Não se podia dizer que fosse bonita, não cheirava bem, pois era incontinente mas para a minha dona foi a cadela mais espectacular, mais esperta e inteligente que ela conheceu. Era uma cadela já muito evoluída dentro da sua condição de cão. O amor é de facto a única coisa valiosa nesta vida e pela qual cá estamos! Claro está que falo do verdadeiro amor. Aquele que começa une os seres independentemente das raças, sexos, idades, e mesmo espécies, vai-se desenvolvendo, cresce e ... nunca mais termina! Pode parar. Ficar como que estacionado por um tempo, mas está lá. Existiu, existirá para sempre até que nalgum outro momento, nalgum outro lugar, de alguma outra forma possa continuar a sua evolução. Esse amor ligou a minha dona a essa cadela.